Arquivo Indisponível

loveletter.exe

loveletter.exe é um pseudônimo da artista paulistana Luciana de Paula Santos.

Este é um texto curatorial diferente


O que de início era para ser uma estrutura textual já conhecida pelo sistema da arte, aqui assume um formato diverso e interativo, possibilitado pela própria plataforma digital que abriga este núcleo da exposição Arquivo Indisponível. Ante a singularidade da produção da artista loveletter.exe, o discurso curatorial se desenvolveu a partir da perspectiva do hipertexto – termo criado em meados dos anos 60 que faz uso dos hiperlinks para ampliar o arco de informações a que o público possa ter acesso a outros conteúdos de maneira crítica, trilhando, assim, seu próprio percurso.

Nesse sentido, o que se verá a seguir é um dispositivo reflexivo, pautado em práticas de leituras digitais e nas obras em exibição: Um princípio viral, Grau Zero da Imagem e Reconhecimento Facial (Facial Recognition).

Curadoria

Laura Rago
Matheus Miranda
Rachel Vallego

HISTÓRIA

Vírus como metáfora

Loveletter.exe é um dos primeiros vírus digitais surgidos nos anos 2000 que, em poucos minutos, se espalhou causando um prejuízo de bilhões de dólares para a rede mundial de computadores. Atualmente, a versão biodigital desse vírus remonta as distopias ciborgues: acessa as redes sociais, buscando novos modos de ser, sentir e compartilhar a vida conectada em rede. 

Luciana de Paula Santos se apropria desse nome para pesquisar e produzir ações micropolíticas em redes digitais e urbanas, desenvolvendo trabalhos em poesia computacional, vídeo, instalações, entre outros. Esses recursos materiais são suporte para debater as subjetividades da rede, da produção de trans-identidades e dos indivíduos virtuais, que nos interrogam a respeito do direito ao anonimato e privacidade em redes híbridas de vigilância e controle. 

As obras de Loveletter.exe levantam, principalmente, discussões sobre as políticas de vigilância e privacidade. “Os trabalhos tensionam as políticas de vigilância e de controle em meio à produção massiva de dados, seja a partir dos espaços híbridos conectados em rede e suas infraestruturas, seja a partir de etnografia e performances em rede”, comenta a artista. 
A artista também é arquiteta e curadora no Estúdio Aisthesis. Doutoranda em arquitetura e urbanismo pela FAU-USP, desenvolve ainda projetos sobre urbanismo conectado em rede, estéticas tecnológicas dos espaços híbridos, acoplamentos para um “corpo-cidade” e estudos da produção em massa de subjetividades em rede.

[Doação _]

Um princípio viral

POR RACHEL VALLEGO

O que será que um vírus digital acha de uma pandemia mundial? É possível que admire seu primo autêntico? Se espanta com a viralidade de sua própria espécie? Se viralizar no ambiente virtual é sinônimo de sucesso, desejaria também se alastrar por todos os cantos do planeta? Um princípio viral, obra que passa a integrar a coleção ARTEMÍDIAMUSEU, retoma essas questões da contaminação em ondas, chegando até nós por meio desta mostra online. Em uma entrevista exclusiva, Loveletter.exe nos confessa:

um vírus como experiência tática desterritorializa o campo normativo de individuação nessa plataforma sociotecnológica que vos fala. Não queremos os campos normativos dos big-data e suas tecnopolíticas totalizantes. Somos múltiplos, desviantes, pronomes c.o.s.m.o.l.ó.g.i.c.o.s… Unidos em rede e fragmentados entre satélites, nos movimentamos em códigos abertos, utopias piratas, gambiarra, na ruidocracia, no erro… 404 not found!”

Num mundo pós-coronalíptico, nossa sobrevivência depende de conseguirmos nos adaptar ao ambiente, seja ele qual for, virtual ou real, físico ou digital. Aqui conhecemos seu formato em infrapoesia que nos lembra: “A única constante é a mutação, mudamos ou sucumbimos.” Se a exposição ao vírus é inevitável, encontrar novas territorialidades será determinante para a continuidade de nossa espécie.

⣬⢚OPEN MOVIE_ Grau Zero da Imagem⣬⢚

POR LAURA RAGO

Laura Rago

Se escrever a história significa dar às datas a sua fisionomia, como as imagens aparecem no contexto da pós-internet e o que elas têm a dizer? 

O artista alemão Harun Farocki (1944-2014) já dizia que uma imagem nunca é inocente, nem um decalque da realidade, uma vez que faz parte de uma cultura historicamente visual em permanente mudança. Nesse sentido, a imagem e o modo determinado da vida andam juntos, num movimento que compromete cada vez mais a noção de verdade. 

E se a realidade é interpretada por meio das informações produzidas pelas imagens, logo urge convocar um olhar crítico capaz de evidenciar as camadas contidas e embutidas na criação dos registros, assim como descortinar as determinadas situações históricas, sociais e políticas e de produção em que foram gerados. 

Loveletter.exe tensiona o processo de construção do nosso olhar em plena transição de uma sociedade disciplinar para uma sociedade de controle na obra Grau Zero da Imagem

A artista se apropria da expressão “imagens pobres”, veiculada pela artista e ensaísta alemã Hito Steyerl, para servir como contraponto às estruturas de representação dominantes. De qualidade fraca e baixa resolução, as imagens pobres são, para Steyerl, o lumpemproletário, uma vez que na hierarquia contemporânea das imagens não lhes foi concedido qualquer valor dentro da sociedade de classes das imagens. Dessa forma, a imagem pobre zomba da promissora tecnologia digital, sendo frequentemente degradada a ponto de parecer um borrão indistinguível. Até mesmo porque – como ela afirma – apenas a tecnologia digital poderia produzir uma imagem degenerada a este ponto. 

Grau Zero da Imagem é um filme em processo e vai na contramão do discurso tecnocientífico da alta resolução tecnológica, buscando as fissuras poéticas, os erros, o glitch e a “imagem suja” e decolonial dos sistemas para confrontar os olhares moldados pela lógica tecnocientífica de produção e legitimação de verdade no sistema capitalista. 

Assim, a apreensão do mundo no pós-digital torna-se, portanto, inelutavelmente atada às imagens que, por sua vez, nos separam da experiência direta. Imagens criadas por dispositivos eletrônicos que ocultam a carga de violência inerente aos progressos tecnológicos.

Nesta transitividade proposta pela artista Loveletter.exe, cabe lembrar Ariella Azoulay.  A cineasta e teórica da fotografia e da cultura visual apontou alguns caminhos em relação aos destinos constitutivos da fotografia. Para ela, a produção das imagens faz parte da “estrutura de mercadoria” e do regime imperial, aquele que pavimentou políticas violentas de desenvolvimento, potencializando o processo de acumulação de riquezas. 

No processo de massificação cultural, bem definido pelo conceito de indústria cultural, a obra de arte converte-se em produto reificado vinculado ao mundo objetivo circundante, encontrando sua forma mais invertida, na sobreposição do ter em relação ao ser, no sistema institucional artístico. É tarefa da crítica, portanto, iluminar essa realidade num esforço constante de impedir que esse domínio essencial da atividade humana se deixe cooptar pela lógica do sistema industrial.

Se estar diante de uma imagem significa escolher nos aproximar por aquilo que vemos ou escolher por aquilo que nos olha, como afirma Didi-Huberman, o trabalho de Loveletter.exe joga luz sobre a era de cegueira humana em que vivemos: não a física, como conhecemos, mas aquela que faz o ser humano perder a visão crítica e profunda. A artista mostra que a arte como gênesis da práxis humana atua essencialmente na conscientização acerca dos conflitos e nos destinos histórico-sociais que brotam desse mundo. Grau Zero da Imagem, portanto, torna visível uma postura tecnicista em relação ao mundo, mostrando como a imagem afeta o contexto no qual está inserida. 

Reconhecimento Facial

POR MATHEUS MIRANDA

Matheus Miranda

Facial recognition ou reconhecimento facial é uma série composta por imagens da artista loveletter.exe. A obra traz o questionamento de bancos de dados responsáveis pela tecnologia baseada em machine learning (aprendizado de máquina), um dos pilares da inteligência artificial. Nas palavras da artista:

Esse estudo busca apontar para novas formas de utilização das redes sociais, sem necessariamente haver identificação com um usuário específico ou com uma identidade “real”, que são a base da política de acesso ao mundo digital. A partir da rede, essa etnografia procura detectar e produzir a poética de personagens, ficções de metadados, publicações e outras realidades possíveis, explorando e criando metaficções a partir do que se definiu como pós-verdade.

A série de obras de “Reconhecimento Facial” está dividida em três blocos temáticos. O primeiro, intitulado “Etnografia de Redes”,  interroga o uso dessa tecnologia de forma arbitrária por empresas, discutindo o uso de imagens entre o público e o privado. A artista nos confronta com fotos de perfis do Facebook de modo público, de forma a questionar acesso e a possibilidade de uso dessas imagens por qualquer pessoa. Onde fica o nosso direito à privacidade? Quais são os dados que não deveríamos compartilhar? Será que deveríamos usar essas redes? 

O segundo, “Engenharia Reversa”, expõe as falhas desse reconhecimento, a partir de bonecos e manequins que tiveram seus rostos identificado. Confrontando como bancos de dados utilizam modelos normativos estabelecidos a partir de pessoas brancas, o que consequentemente faz com que não ocorra uma análise adequada de rostos negros, por exemplo. Isso também se estende aos filtros do Instagram e do Snapchat que coletam dados faciais para aumentar seus bancos de dados e, cada vez mais, aperfeiçoando essas falhas e corrigindo-as.

Por último, “Triangulações” exterioriza a etapa da triangulação das formas do rosto analisado, demonstrando como é feita essa leitura de forma geométrica. A obra demonstra “os processos” que a máquina executa, quais são essas dinâmicas camufladas pelos softwares de análise? Quais são os diagramas feitos? E para onde eles levam? A série retrata como é executado o reconhecimento facial, o mapeamento das medidas e topografia do rosto, desenhando pontos faciais, explorando visualmente as falhas dos softwares e suas distorções. 

Assim, Loveletter.exe, traz uma discussão sobre como as empresas utilizam essas informações. A artista nos oferece um ponto de partida para uma reflexão mais aprofundada acerca da nossa relação com os dados e dispositivos: computadores, celulares, tablets. Especialmente, sobre como utilizamos as redes e mídias sociais, as formas como nossos dados são analisados e processados pelas empresas bem como a inteligência artificial constrói bancos de dados a partir de nosso comportamento em rede. 

Se já somos ciborgues – corpos-avatares acoplados em dispositivos rastreáveis –, que possamos ser descoloniais. Talvez por meio do engajamento corporal em propostas artísticas subversivas. Mas também, não custa sonhar, por meio de alguma emancipação técnica: criptografia, software livre, provedores descentralizados, ferramentas de comunicação não rastreáveis.
(Debora Pazetto)

Se escapar dessa colonização de dados pode parecer impossível, corroer o sistema por dentro poderia ao menos manter nossas intimidades mais livres?

Sugestão de filme

Coded Bias

Este documentário investiga o viés nos algoritmos depois que a pesquisadora Joy Buolamwini, do MIT, descobriu falhas na tecnologia de reconhecimento facial.

Você sabe o que é reconhecimento facial?

Segundo Giselle Beiguelman, o reconhecimento facial funciona a partir de duas operações complementares: rastreamento e extração. O rastreamento é a tradução geométrica de características que são comuns a maior parte dos rostos. Nessa etapa, são detectados pontos nodais, como a distância entre os olhos, o comprimento do nariz e o tamanho do queixo. Esses pontos, que aparecem com frequência na iconografia relacionada ao reconhecimento facial, são registrados, e o resultado dessas equações é a leitura da face. No processo de extração, as características individuais que particularizam um rosto e o diferenciam de outros são calculadas, por meio de comparações com outras imagens previamente coletadas da pessoa. Nesse sentido, o uso de reconhecimento facial é amplamente utilizado em nosso cotidiano para identificação e confirmação da identidade de um rosto. Entretanto, esses softwares de análises faciais estão presentes na nossa relação como percebemos nossas redes sociais, nossas próprias fotos, ou até mesmo como somos lembrados dessa identificação a todo instante.